Diário de campo narra sonho e tragédia dos índios da Amazônia

07/05/2012 15:58

Geralmente à noite, dentro do mosquiteiro, para escapar dos carapanãs, o antropólogo Sílvio Coelho dos Santos escrevia no seu diário de campo todos os detalhes da missão amazônica com uma seriedade científica que não encobria, contudo, o sentimento de idealismo e justiça social do estudante. Ao chegar ao posto Ticuna, no dia 5 de julho, antes de testemunhar as condições de privação e violência em que viviam esses índios, Sílvio revelou sua emoção e o temor de não ser capaz de realizar a missão que lhe fora delegada.

 

-Às 16,30 horas chegávamos a Mariuaçu, sede do Posto Tukúnas, onde fora recebido pelo encarregado, Sr. Bernardino. O prazer de ver os índios foi total e por um momento pensei ter realizado meus sonhos.

 

Assim o pesquisador começa a narrar a expedição ao lado da colega paranaense do curso de especialização Cecília Vieira Helm e do coordenador, Roberto Oliveiraquelhe encomendara a pesquisa (o renomado etnólogo faleceu em 2006, dois anos antes do orientando). Segue-se aí um envolvente e envolvido relato de um narrador empenhado em deixar um registro bastante completo sobre as práticas culturais e religiosas, mitologia, sonhos, doenças, tristezas, educação indígena pelos brancos, luta pela sobrevivência da nação Ticuna.

Com um total aproximado de 200 páginas escritas na grafia da época, o relatório apresenta-se na forma manuscrita e datilografada pelo próprio autor,e já é projeto de publicação da Editora da UFSC. Cópia do material só chegou à direção do museuhá cerca de oito meses,pelas mãos da esposa do antropólogo, Alair Santos. Embora inédito, o diário foi objeto de análise da mestra em Ciências da LinguagemCristina Castellano, que escreveu sua dissertação a respeito da coleção Ticuna sob a orientação do antropólogo Aldo Litaiff, aluno e parceiro de pesquisa de Sílvio no atual MArquE.

 

Ao final do segundo diário, o antropólogo transcreve entrevista com o major Pereira de Melo, que atuou no subcomando do grupo da fronteira de Manaus na expedição Javari de 1960. Sílvio Coelho interroga-o com o objetivo deesclarecer qual era a população metralhada pelo exército na operação que “limpou”a área dos “bandoleiros”, como o major chamava os “apátridas com base no Peru” que, segundo ele, estariam usando os índios em seus ataques às tropas e aos moradores. Uma observação corajosa do pesquisador na última página revela a saga dos índios amazônicos naqueles tempos de ditaduramilitar, extermínio dos povos nativos, extração desenfreada da madeira e política desenvolvimentista:

 

– Pelo modo de narrar os fatos, parece que nosso informante estava consciente que os residentes nesse acampamento e vítimas dos ataques do exército eram índios. Falou-nos de que só uma lata de conserva, usada como panela, e calções que alguns habitantes usavam denunciavam a presença de civilização. Todo o acampamento era de estilo típico indígena.  Uma sepultura recente foi aberta e o morto estava nu, sobre uma rede indígena.

 

Coelho denunciava assim os problemas dos índioscom as autoridades brancas, que procuravam sempre culpar as brigas entre “tribos” pelo seu extermínio. Ao mesmo tempo mostrava a complexidade e poética da sua cultura, enfatizando a forma de organização social e política desse povo de castas patrilineares, que só admite o casamento entre membros de linhagens diferentes (designadas por nomes de aves e deplantas). Todavia, só eles são capazes de interpretar os sinais que indicam o pertencimento a uma ou outra casta.

 

 

O RITUAL DA ADOLESCÊNCIA

 

Como outros exploradores que o sucederam, Sílvio Coelho sofreu o magnetismo pelaFesta da Moça Nova, o worecu, ritual de iniciação femininaque dura três dias. Grande parte dos objetos coletados pertencem a essa tradiçãoque envolve todos os parentes e amigos das aldeias próximas. Inicia com música, bebida (pajarú) e comida preparada pela família na “casa de festa”, preparada pela família da moça que recebe a primeira menstruação. Quando os convidados chegam, os mascarados adentram a festa com uma impressionante coreografia. As máscaras são usadas para expulsar os espíritos malignos e reanimar os espíritos da puberdade, em um movimento que perpetua o ciclo natural de nascimento, crescimento, maturidade e morte. Acalmados os espíritos, as moçasiniciadas na adolescência, são libertasdo retiro em que eram mantidas em “currais” ou “jiraus”. Com os cabeloscortados ou arrancados, surgem ricamente vestidas e adornadas para serem apresentadas a toda aldeia como uma nova pessoa, conforme relata o antropólogo João Pacheco Oliveira.

 

De aparência monumental e impressionante, as máscaras constituem uma das manifestações mais ricas da arte Ticuna. Confeccionadas com fibra de tururi (entrecasca de espécie de Ficus), exibem geralmente uma face humana ou zoomorfa esculpida em “pau de balsa” e cocar feito de cortiça de buriti, conforme explica Cristina.Ao fazer o registro do primeiro dia, o pesquisador anota no silêncio noturno do mosquiteiro:

 

– À tarde fomos assistir a um ritual de “Virada” do “Pajarú” – bebida feita de mandioca, para a festa da moça nova – e que se inicia, ao que parece, com um toque de tamborim.  Nessa oportunidade notamos uma índia que catava os piolhos de  uma índia velha e os comia.  Outro fato que despertou nossa atenção foi o fabrico, na mesma casa, de uma bebida feita de banana madura.

 

Apesquisa está norteada pelo conceito de “fricção étnica”,então recém-proposto por Roberto Cardoso de Oliveira, em contraposição à noção de alienação cultural, que pressupõe submissão total da cultura oprimidaà dominante. Em vez disso, Oliveira e Sílvio acreditavam que a relação entre o dominador e o dominante produzia resistência, luta,atrito, contágio e contaminação. Nas páginas amarelecidas pelo tempo, os registros da rotina na aldeia são avivados pornarrativas mitológicas e depoimentos diretos dos índios contando situações de conflito que tornam o relato muito verdadeiro e precioso como material bruto de análise.Utilizados mais além por Oliveira no livro O diário e suas margens: viagem aos territórios Terêna e Tukúna,os originais manuscritos trazemainda informações demográficas, desenhos eestudos genealógicos de famílias que o pesquisador adorava fazer na tentativa de compreender o estranho sistema de clãs do “povo pescado”.

 

Mais tarde, já reconhecido como um dos maiores antropólogos do Brasil, Sílvio se valeria dessa experiência para fazer um trabalho de campo semelhante com o povo Xocleng em Santa Catarina, que deu origem às obras Índios e brancos no sul do Brasil – a dramática experiência dos Xokleng e Os índios Xokleng; memória visual. Como fruto de sua lutajunto a outros antropólogos e indigenistas, finalmente nos anos 1990 os Ticuna lograram o reconhecimento oficial da maioria de suas terras. Hoje enfrentam o desafio de garantir sua sustentabilidade econômica e ambiental e manter vivas suas práticas culturais. A paz dos Ticuna, contudo, está longe de ser alcançada. Passa pela melhoraria de sua relação com a sociedade branca, historicamente marcada pela violência, como já mostram os depoimentos de índios recolhidos pelo pesquisador em seu diário: “Nem todos os civilizados são bons, alguns brigam com os tukuna, às vezes discutem com o freguês e não deixam dever mais de um mês” ou “Omerino Mafra açoitou um tukuna e ele não deixa tukuna vender para quem quer”.

 

Como a primeira jornalista a ter acesso a essa escrita etnográfica, perguntei a mim mesma e a todos que entrevistei: por que Sílvio Coelho dos Santos, de quem fui aluna especial no Curso de Pós-graduação em Antropologia, no qual era coordenador e gozava de amplo prestígio, tendo ainda sido pró-reitor de Ensino de Graduação e também de Pesquisa, presidente da Associação Brasileira de Antropologia, secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, pesquisador sênior do CNPq, nunca se interessou em publicá-lo?  E a resposta que ouço da esposa Alair confirma minha hipótese: “Foi o seu primeiro trabalho como antropólogo;imagino que ele não acreditava no valor que isso pudesseter”. Mas é justamente no idealismo ingênuo e no entusiasmo do pesquisador ao encontrar o outro da antropologia que reside o frescor e o encanto dessa etnografia.

 

“Ticuna em dois tempos” mostra que antes de se tornar um dos etnólogos mais importantes do Brasil e um grande defensor da causa indigenista, Sílvio Coelho fez um “estágio de indigenidade” com esse povo ameaçado pelo que chamava de “interesses capitalistas”. Esse estágio impactou para sempre sua formação científica e humana. Além de antropólogo, ele foi,durante três meses, um jornalista, um fotógrafo, um habilidoso narrador, um Euclides da Cunha na Amazônia. Foi ave ou planta:Sílvio Coelho foi Ticuna!

 

Trechos do Diário de Sílvio Coelho:

 

“Sobre a viagem, posso registrar que está completa. Vivo cenas que sonhei quando garoto e que nunca imaginei viver”.

 

“Aqui o antropólogo tem que ser acima de tudo um equilibrista, pois ora são pontes de um único toro de içara que deve ser atravessado, ora os balanceios e reviravoltas da embarcação na correnteza que deve ser mantida em equilíbrio”.

 

“Nada, narração alguma poderia dar ideia a alguém sobre o que é um igarapé, a bacia amazônica. As prainhas formadas, as curvas, os furos, os pequenos igarapés afluentes, as árvores caídas formam um conjunto indescritível”.

 

 

Reportagem: Raquel Wandelli

Jornalista da UFSC na SeCArte

raquelwandelli@yahoo.com.br

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