Pichação ou grafite? Ciclo debate, na UFSC, liberdade e expressão no Estado Democrático de Direito

24/09/2018 10:30

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

“Se essa rua fosse minha…” já dizia a cantiga popular. Mas se, ao invés do conceito de posse, nos perguntássemos “se essa rua fosse de todos?” O que faríamos com essa e tantas outras ruas, praças, bosques, servidões, parques e estruturas públicas que podem ser vistas, sentidas e utilizadas de uma maneira mais interativa, plural e por todos?

1° Ciclo de Debates ‘Liberdade e Expressão: arte e liberdade de expressão nas cidades contemporâneas’ começou na noite de quarta-feira, 19 de setembro, com a proposta de fomentar o debate em torno de até onde podemos ir enquanto cidadão para não infringirmos o conceito de bem comum. A atividade, que ocorreu no auditório Garapuvu do Centro de Cultura e Eventos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), envolveu pesquisadores e estudantes das áreas de Arquitetura e Urbanismo, Artes e Direito, dialogando sobre o que é expressão e liberdade, como essas podem ser usados em espaços públicos e implicações jurídicas desses usos.

Os participantes da mesa de abertura foram enfáticos ao defenderem a liberdade de expressão como um ambiente de debate e provocação social em busca da reflexão e do diálogo coletivo. O momento contou com o depoimento do professor Áureo Mafra de Moraes, chefe de gabinete da Reitoria da UFSC, e que passa, junto com o reitor Ubaldo Cesar Balthazar, por recente denúncia do Ministério Público Federal por crime de injúria contra servidora pública federal. (Confira Nota Oficial sobre o assunto AQUI).

Foto: Marcelo Cabral Vaz

“Somos a face visível que revela o quanto algumas instituições de Estado têm praticado [ações] para tentar fazer um Estado que não é o nosso, um Estado Democrático de Direito. Por isso estou aqui… que bom que após 30 anos do fim de um regime que nos sufocou eu posso vir aqui e falar de peito aberto”.

Após a solenidade de abertura, os presentes puderam acompanhar a primeira Mesa que abordou a ‘Arte urbana e dissensos na cidade contemporânea’. Composta pela artista e professora da UFMG, Brígida Campbell, a advogada e coordenadora da pós-graduação em Processo Penal da ABDConst, Anna Carolina Faraco Lamy, e o professor de Direito da UFSC e ex-Procurador do Estado de Santa Catarina, João dos Passos Martins Neto, a temática tratou da problemática sobre a regulação constitucional que regula a expressão, exemplos de ocupações de espaços públicos como forma de expressão social e a interpretação jurídica em torno da intervenção artística na Lagoa da Conceição por estudantes da UFSC, interpretada como pichação e não como uma intervenção artística.

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Segundo João, a nossa Constituição Federal tem um conjunto de exposições que constitui a norma da liberdade de expressão. “Diz que é livre a expressão do pensamento, que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa, ou convicção política ou filosófica. Diz que é vedada toda e qualquer forma de censura política, artística ou ideológica. Diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Diz que nenhuma lei poderá constituir embaraço ou a liberdade de informação jornalística”.

Assim, o pesquisador desenvolve o seu pensamento na argumentação de que é assegurado a todos o acesso à informação e que esse conjunto normativo corresponde a um princípio político e moral vigente nas sociedades democráticas, de forma que as pessoas podem ser livres para ter e expressar as suas ideias e difundir informações, quaisquer que sejam essas ideias. “Desta forma, nos questionados sobre o que as pessoas estão autorizadas a falar. Vivemos neste dilema: o que a Constituição realmente preserva?”, questiona ele.

Em sua tese, Martins Neto diz que a norma constitucional de liberdade de expressão protege, especialmente, algo que chama de crenças e pensamentos sinceros. Essa seria uma frase mental silenciosa formulada sobre um acontecimento do mundo e, se aceita como verdade mentalmente, significa que a atitude mental é de alguém que acredita/crê em um fato. “Quanto a Constituição assegura a liberdade de pensamento, penso que ela protege justamente esse tipo de ato da fala, essas crenças e pensamento sinceros, independente do seu conteúdo. Então, se é nisso que você acredita, a única coisa que você faz é transportar o seu pensamento/crença do seu mundo interior para o seu mundo exterior, através da linguagem, a única coisa que você está fazendo é exprimindo o seu pensamento e nada além disso. E ao fazer isso você não viola o direito de ninguém, porque ninguém tem o direito de exigir que você acredite diferentemente de que você acredita”

Foto: Divulgação/Blog Praça Livre BH.

Neste contexto, a arte surge como um instrumento de veiculação da arte. Campbell apresentou aos presentes manifestações artísticas realizadas em Belo Horizonte (MG), por meio da ocupação popular de espaços públicos, como forma de pensar a arte como um movimento contra as estruturas de poder. “A partir da proibição de eventos na Praça da Estação, por meio da Prefeitura Municipal, esse lugar árido e quente foi transformado em uma praia. Então a população pensou: ‘vamos criar a nossa praia’. A Praia da Estação trouxe diversas pessoas para em uma manifestação inusitada e importante porque gerou, não só uma resistência ao decreto da Prefeitura, como também uma provocação à ocupação e à proposta do espaço público”.

Brígida faz pensar sobre para que serve, quem pode estar e quem pode definir o que acontece nesse espaço. Em decorrência da Praça da Estação, foram fortalecidas outras lutas de resistência ao espaço público, como: ressurgimento do carnaval, Duelos de MC’s, Teatro Espanca, ocupação temporária de lotes vagos para pensar o espaço privado e público, Poro BH, Pisagrama, entre outros, definidos como espaços para acolher as pessoas, englobar culturas, fomentar debates, mostrando que diversas forças podem conviver dentro de espaços públicos. “A arte pode ocupar esses espaços criando proposições que nos fazem questionar a própria estrutura da cidade, a nossa posição e participação dentro da esfera pública, como também repolitizá-los. Uma arte mais democrática poderá nos permitir atuar na descolonização e abrir os canais para que outras pessoas entrem no universo da cultura. Isso dará respaldo para fazermos o que queremos e lutarmos contra as estruturas de poder”, frisa ela.

A advogada Anna Carolina, por meio da intervenção artística de estudantes da UFSC chamada ‘Im[pé]ssão Corporal: pegadas entre praças Cidades Pra Quem?’, fez a relação entre arte e direito e discorreu sobre a liberdade de expressão assegurada pela Constituição Federal, uma reação ao que aconteceu no período da Ditadura Militar, assim como a Declaração Universal dos Direitos dos Homens e Cidadãos. “São duas normas que têm a finalidade específica de responder a períodos de limitação de direitos, porém o nosso Código Penal e o de Processo Penal são anteriores a ambas. O que significa dizer que eles não encontram mais respaldo naquilo que deveria ser o fundamental do Estado Democrático de Direito, pois no momento em que a temos uma constituinte que instaura uma nova estrutura de Estado, significa dizer que tudo que a antecede e que não encontra respaldo no seu conteúdo, está revogado”.

De acordo com Lamy, a nossa legislação penal é 100% pautada na ideia de limitar direitos e de ser uma força que se opera sobre o corpo das pessoas para pacificá-las. Não se trata de uma ferramenta preventiva de conscientização, ela é reativa e impositiva. Assim, a manifestação de arte feita pelos estudantes podem ser interpretada como pichação ou grafite. “Essa é a estrutura jurídica de hoje, pois o Sistema Judiciário é composto por pessoas que, por sua vez, têm percepções diversas sobre um determinado fato. Entretanto, quando um movimento de uma universidade tem a finalidade de mostrar à administração pública que em um local precisa haver um faixa de pedestres, ele não está violando o bem jurídico. Só que essa construção, dificilmente as autoridades estão interessadas em fazer”.

O envolvimento multidisciplinar do evento é um primeiro passo para debater, dentro da estrutura acadêmica, os dissensos que envolvem arte, liberdade e expressão, pois, conforme finalizou a advogada Anna Carolina em sua fala, “esse tipo de debate é fundamental para a resistência, porque cabe à universidade resistir, ser uma ferramenta de mudança e reação. Por isso que, mesmo às vezes tendo medo, nós não podemos nos calar”.

Em seguida às palestras realizadas no primeiro dia do Ciclo de Debates, a mediadora Elaine Nascimento abriu o espaço para perguntas.

A primeira edição do 1° Ciclo de Debates ‘Liberdade e Expressão: arte e liberdade de expressão nas cidades contemporâneas’ foi realizado nos dias 19 e 20 de setembro. É uma iniciativa da Secretaria de Cultura e Arte (SeCArte) e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC (ARQ), com o apoio do Departamento Artístico Cultural (DAC), Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósARQ), Academia Catarinense de Letras e Artes (ACLA) e da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc).

Nicole Trevisol / Jornalista da Agecom / UFSC

Assista as palestras: