É tudo uma questão de adaptação: obra põe em xeque autoria na pós-modernidade

08/04/2011 16:20

A questão da adaptação da literatura para o teatro ou para o cinema e vice-versa já rendeu vasta bibliografia sobre as transformações sofridas pelas obras de arte quando transpostas para linguagens diferentes. “O meio é a mensagem”, cunhou McLuhan. Não se diz a mesma coisa em veículos diferentes. Notorizada pelos livros em que desenvolve os conceitos de paródia, ironia e intertextualidade, a teórica canadense Linda Hutcheon foi muita além das discussões sobre a fidelidade aos originais e encontrou na adaptação um emblema do próprio modo de criação na pós-modernidade. Em Uma teoria da adaptação, sua última obra, publicada pela Editora da UFSC, Hutcheon demonstra que com o advento das novas tecnologias de comunicação e a convergência das mídias, toda autoria passa obrigatoriamente pela adaptação.

Entre uma safra de lançamentos de autores contemporâneos de repercussão internacional, a EdUFSC escolheu Uma teoria da adaptação para encerrar na sexta-feira, 8, a Feira de Livros que promove desde o dia 13 de março na Praça da Cidadania, em parceria com a Liga das Editoras Universitárias. Considerada referência nos estudos sobre literatura pós-moderna Linda Hutcheon é fundadora do conceito de metaficção-historiográfica como marca dessa literatura que se alimenta dela mesma e da história enquanto discurso também literário. Foi traduzida por André Cechinel, recém titulado doutor em Teoria Literária pela UFSC com uma tese sobre o poeta T.S. Eliot, ele mesmo um grande adaptador criativo.

Por essa tese, autoria na pós-modernidade não pode escapar à adaptação. Estamos sempre adaptando ainda que de forma não consciente. “Adaptar é um pouco como redecorar”, diz o pensamento de Alfred Uhry na epígrafe do livro. Valendo-se de muitos exemplos ilustrativos que vão desde as tradicionais artes impressas e performativas como cinema, literatura, teatro, ópera e televisão até as mais contemporâneas, como videogames, obras digitais, parques temáticos, covers de músicas, Hutcheon leva esse conceito às últimas conseqüências, a ponto de caracterizá-lo como um modo de criar o novo a partir do velho próprio deste tempo. Revela que esse processo ocorre não só quando as obras derivam de uma adaptação propriamente dita, como no exemplo clássico de um romance que é levado às telas do cinema, mas sempre que alguém (re)cria, (re)escreve e sobretudo quando lê está condenado a fazer adaptações de textos e obras anteriores. Ou seja, adaptação não é exceção, é regra.

A teoria da adaptação permite perceber que a globalização e as novas tecnologias, sobretudo as mídias digitais, estão potencializando esse processo de colagem a ponto de levar à reformulação radical da questão da originalidade e de confundir o que é roubo e plágio. E ainda que as forças capitalistas tentem conter o controle sobre quem é o dono da obra através da lei de direitos autorais, as novas mídias colocam definitivamente em xeque a autoria nos termos românticos que a compreendiam como obra de gênio, original, única e propriedade privada. Sobretudo porque com os novos meios radicaliza-se um terceiro modo de engajamento com as histórias, que não é mais apenas contar e mostrar, mas interagir. E aí, o mais importante, é que Hutcheon considera a intervenção do leitor no mesmo plano da autoria como uma nova adaptação.

Efetuando ela mesma a adaptação de teorias anteriores sobre a intertextualidade e sem a pretensão de inventar a roda, Hutcheon afirma que todas as obras, nesse sentido, são secundárias e que toda arte deriva de outra arte. “As adaptações apenas são as próximas da fila”. Nesse caminho, a despreconceituosa epígrafe do escritor beat William Burroughs já nos anos 60, sustenta a tese da teórica, salvando as adaptações da depreciação como arte secundária recorrentes no senso comum e no meio acadêmico: “No fim das contas, a obra de outros escritores é uma das principais fontes de input para o escritor, então não hesite em utilizá-la; não é porque alguém teve uma ideia que você não pode se apropriar dela e lhe dar um novo desdobramento. As adaptações podem se tornar adoções bem legítimas”.

MORRE O AUTOR, NASCE O ADAPTADOR

Na obra escrita especialmente para a edição brasileira e prefaciada por Anelise Corseuil e Rosana Kamita, ambas professoras da UFSC, Hutcheon teoriza sobre a passagem “transcultural” que ocorre quando uma história é adaptada para outras mídias, gêneros, línguas e culturas. Detém-se a analisar aí um processo que chama de indigenização (indigenization), traduzido como nativização ou aculturação, que faz a obra necessariamente assumir diferentes significados quando apropriada por diferentes sujeitos em seus contextos históricos. “Nós não apenas contamos, como também recontamos nossas histórias. E recontar quase sempre significa adaptar – ‘ajustar’ as histórias para que agradem ao seu novo público. Mesmo antes do advento do mundo globalizado atual, todas as culturas estiveram envolvidas com traduções interlinguais e adaptações interculturais”, escreve a autora no prefácio, distanciando-se assim das gastas discussões sobre a ilegitimidade das adaptações.

Esse autor que adapta as histórias e tem na internet seu meio ideal de recontar e propagar histórias com um simples forward seria o protótipo do narrador da pós-modernidade. Um tipo de narrador, aliás, profeticamente já exercitado por Walter Benjamin – autor de ensaio definitivo sobre a discussão arqueológica do ofício do narrador – em Passagens, obra-prima com mais de mil páginas de citações selecionadas e comentários sobre leituras feitas na Biblioteca de Paris. Nunca é demais lembrar a interminável sequência de adaptações feitas pelos célebres pintores impressionistas e modernos do quadro “As banhistas”, de Renoir, que aliás, originalmente já nem lhe pertence, se considerarmos toda a história da arte que representa mulheres em banho, como o Nascimento de Vênus de Botricelli, que por sua vez remonta a arte trusca e os afrescos de Pompeia.

Uma Teoria da Adaptação pode ser vista, na avaliação do editor Sérgio Medeiros, como uma ponte entre a teoria da intertextualidade, segundo a qual toda obra é transformação de outra, e a recente teoria do texto encontrado, cuja semente já estava também no velho Benjamin. Essa ideia passaria de sugestão à concretização no meio digital, onde os textos são literalmente encontrados e colocados em novos formatos, passando a gerar novos textos. “E os autores desses textos encontrados não são ao pé da letra autores no sentido clássico, mas adaptadores”, explica Medeiros. “Cai por terra a relação de causa e efeito entre criador e criatura, como se o autor fosse anterior à obra, ou se a tirasse de si mesmo”. Na teoria da adaptação afirma-se a ideia já sugerida por Roland Barthes em “A morte do autor” de que toda autoria é coletiva.

Em diálogo com todos esses textos, Linda Hutcheon aponta, na metáfora e no funcionamento da adaptação, o emblema para compreender as mudanças estéticas que caracterizam a passagem do século XX para o século XXI. A autoria na era digital parece se estabelecer não na arte de redigir textos, mas de encontrá-los e adaptá-los e a internet torna-se, como o palco do teatro, um lugar bem menos ortodoxo do que aqueles que fiscalizam a sua pureza, segundo Philip Pullman. “O palco sempre recebeu com alegria quaisquer boas histórias”.

Lançamento: Uma teoria da adaptação
Editora da UFSC
Autora: Linda Hutcheon
Tradução: André Cechinel
Local: Feira de Livros da EdUFSC/LEU
Data: 8/4, das 9 às 19 horas.

Raquel Wandelli, jornalista na SeCarte/UFSC
(048) 37219459 e 99110524
Professora de Jornalismo da Unisul,
doutoranda em Literatura/UFSC
raquelwandelli@yahoo.com.br
raquelwandelli@ufsc.br