A desconstrução é a justiça

09/05/2012 17:44

Bataille argumentava que, nos homens civilizados, a boca teria perdido a característica relativamente proeminente que ainda tinha nos selvagens. No entanto, o violento significado originário desse órgão é mesmo assim preservado, em estado de latência, porque, de repente, seu sentido insólito pode vir subitamente à tona com uma expressão, dizia Bataille, “canibal literal”, tal como boca de fogo, aplicada às armas com as quais os homens se matam entre si. E desse modo, em certas ocasiões, a vida humana ainda se concentra, de forma bestial, na boca, na medida em que a cólera faz ranger os dentes, ou a abjeção e o sofrimento atrozes fazem da boca o órgão dos gritos mais dilacerantes .
Essa caracterização da boca, não só como a abertura por onde fluem as palavras sublimes, tais como democracia ou justiça, mas uma zona erógena onde tudo quanto é vital se precipita, insere-se na tentativa bataillana de não recair no determinismo do materialismo dialético e, pelo contrário, através do baixo materialismo, definir a cultura não exatamente enquanto processo ascendente de produção, circulação e consumo, mas como elaboração da perda e dispêndio de forças vitais, de caráter circular. Para tanto, Bataille levava em conta, não só tudo aquilo que se depreende do corpo, tal como secreções, dejetos, ou até mesmo a própria pele (de que o moi-peau de Didier Anzieu seria um remoto avatar), mas também tudo o que se põe para fora, pelo buraco da boca, e que não seja linguagem destinada à comunicação, quero dizer, tanto o grito quanto a efusão poética e, consequentemente, o dispêndio que pressupõe a própria morte .
Essa conceituação da cultura levava Bataille a ver a democracia como algo a mais do que um simples e precário equilíbrio entre as classes sociais. Essa é uma forma transitória e simplificadora de conceber a política e, a seu ver, era necessário perceber que a democracia, como ele argumentava, não aporta consigo somente as grandezas, mas também as pequenezas da decomposição . A vida, para Bataille, não sendo unívoca, exigia que o protesto contra o formalismo idealista, ainda dominante, não se limitasse à democracia, em seu sentido representativo. Seu foco não se detinha, portanto, no aquém (en-deçà), simplesmente porque as possibilidades da existência humana podiam muito bem estar situadas para além (au-delà) da formação das sociedades ocidentais e seu modelo acéfalo buscava, entretanto, o elemento soberano que não só elide a racionalidade e exclui a chefia, i.e. o mundo administrado, mas, acima de tudo, também aquilo que solicita a auto-exclusão dos membros da comunidade, presentes sómente através da própria ausência de racionalidade, em sua participação trágica, como sujeitos atravessados pela paixão, isto é, pelo êxtase, portadores que são do destino das imagens .
Ora, essa definição não-mimética, não representativa, não ideal-formal veio se mostrar necessária no recente debate em torno à palestra inaugural de Mário Vargas Llosa na Feira do Livro de Buenos Aires. Vargas Llosa, como sabemos, detestava Derrida, a quem atribuia cultivo do obscurantismo e renúncia à estética, como Marcos Siscar relembrou oportunamente. A circularidade do argumento verifica-se quando analisamos, em detalhe a polêmica. Ela detona quando o diretor da Biblioteca Nacional, Horacio González, em carta a Carlos De Santos, presidente da Câmara do Livro, promotora da Feira, considera “sumamente inoportuno el lugar que se le ha concedido para inaugurar una Feria que nunca dejó de ser un termómetro de la política y de las corrientes de ideas que abriga la sociedad argentina” , opinião de per se discutível mas nunca censurável, muito embora muitos jornalistas tenham visto, na frase de González, um argumento autoritário, quando, a rigor, é um argumento justamente autorizado, mesmo que anacrônico, o do diretor da Casa dos Livros, em carta ao diretor da Feira dos Livros. O conflito põe a nu a íntima e indiscernível fusão entre as esferas da autonomia literária, da soberania política e do mercado. Em sua carta, González acrescenta algo que, mesmo sendo fundamental, tem sido solertemente obliterado. “Lo invito a que reconsidere esta desafortunada invitación—diz González—que ofende a un gran sector de la cultura argentina y que junto a las respectivas comisiones directivas de la Fundación El Libro determine que la conferencia de Vargas Llosa—que podríamos escuchar con respeto en la disidencia— se realice en el marco de la Feria, pero al margen de su inauguración”.
En el marco, pero al margen é uma tópica muito complexa para a física de espaços achatados da mídia global, de que a Folha de S. Paulo é o exemplo local mais próximo . Em nome da liberdade de expressão, o jornalismo “independente” logo se abate sobre González e, na sequência, a própria presidenta, Cristina Kirchner, solicita a González que retire a carta para que não pese nenhuma suspeita de veto sobre o escritor peruano . O escritor e jornalista Horacio Verbitsky logo qualificou a intervenção de González, irônicamente, de fogo amigo . Mas o paradoxo é inegável: para salvar a liberdade formal de poder abrir a boca, fecha-se, sem qualquer cerimônia, a boca do diretor da Biblioteca. Horacio González não tem direito de opinar e é censurado, de fato, não pelo Estado, mas pelo consenso e o lugar-comum da mídia e do establishment. Vargas Llosa, por sua vez, que logo encampou a leitura binária, liberdade de expressão versus ditadura , manifestou-se imediatamente, através de um texto publicado por El Pais de Madri (jornal que integra o mesmo grupo econômico que sua editora, Alfaguara), texto replicado por La Nación, de Buenos Aires, onde acusava González de basear seu veto no fantasma do “nacionalismo”, que ainda grassaria incólume na América Latina. O diretor da Biblioteca Nacional respondeu-lhe, no dia seguinte, através do jornal Página 12, ponderando que, com o recurso ao nacionalismo, Vargas Llosa

Busca enemigos fáciles, a priori repudiados en el mundo globalizado en el que se mueve. ¿Qué peor que el inquisidor y el aldeano reducido a su necedad, el pobre individuo obturado por su cerrazón? ¿Contra eso discute usted, Vargas Llosa? Si es así, no es un polemista genuino, dispuesto a comprender razones y argumentos de sus contrincantes. Se mueve dentro de grandes clichés despojados de espesura, esos que le festejan las derechas mundiales. No vacila, en la cumbre de su fervor por la bravata –una fruición que domina a la perfección, pero con una superficialidad que en general no tienen sus novelas–, en arrojarnos a Ernesto Guevara o a Alberdi como inculpación, y al universalismo democrático y republicano como cartilla que no poseeríamos. ¡Meras argucias del pobre polemista mal informado!

Mas González, entretanto, é bem informado. Dois meses antes da polêmica, resenhara o ultimo romance de Vargas Llosa e aí afirmava, por exemplo, que

Su última novela, El sueño del celta, contiene un breviario del credo liberal de quien la escribe, a la manera de una novela de tesis pero, como veremos, invertida. Es la historia de un personaje históricamente existente, que se situará en los antípodas de ese mismo credo. En verdad, Roger Casement, en su dramática conversión desde su papel de cónsul humanitario del Foreign Office a diplomático prominente del ejército de liberación irlandés, nos sorprende como una figura fanática, un militante iluminado y cercano a un orden sacrificial, tal como los que Vargas Llosa acaba de condenar en su discurso de aceptación del reciente Premio Nobel de Literatura. El novelista premiado condena; pero el novelista sumergido en la penumbra de su gabinete literario traza de manera honrosa el via crucis de su personaje. ¿Cómo pensar esta discordancia?

Ora, segundo González, a questão explica-se pela diluição do experimentalismo, herdado de Faulkner, Flaubert ou Conrad, a tal ponto que Vargas Llosa pode hoje regressar, sem pudor, aos esquemas previsíveis do determinismo histórico do século XIX, ciente de que “la novela moderna nace del distanciamiento de los autores respecto de sus personajes, produciendo una voluntaria e irónica suspensión del juicio moral que fundamenta el oficio mismo del escritor”. Em suas mãos, a Erfahrung modernista tornou-se simples Erlebnis de modernização diluída, mero romance de tese. Mas,

Lo que tienen de tesis las novelas de Vargas Llosa—afirma Horacio González—suele estar menos en sus propios desarrollos que en los actos políticos del liberalismo un tanto fanatizado del escritor en tanto ideólogo –pues con alguna compensación personal tenía que contener su sinuosa predilección novelística por esas almas extremas, atormentadas–. Bajo el peso de sus mismas inmolaciones, ha condenado en el tribunal del Premio Nobel a los sediciosos utópicos, a los cándidos militantes, a los obcecados revolucionarios al borde del escepticismo, que son sus polichinelas y esperpentos, a fin de mostrar un liberalismo universalista, munido de un sumario antitotalitarismo, llamando a “recuperar las libertades”.

E nesse sentido, Vargas Llosa não é, a rigor, um estranho, mas alguém excessivamente familiar, um intelectual sartreano do Establishment.

Héroe de la gran prensa establecida en esas estaciones de reaccionarismo cultural y político, Vargas Llosa es casi un nombre argentino. No ve la compleja pero atractiva hora que vivimos, quiere sacudírsela de encima, pero deja convivir en él los rastros de sus viejos símbolos rotos y la conciencia ya asentada del temor por su propio pasado. Se pasea como marioneta ambulante, aunque no tiene derecho a aleccionarnos sólo por seguir escribiendo sobre los personajes turbulentos de una historia demasiado familiar. No es respetable, aunque sus fantasmas puedan serlo .

Não veio à tona, no debate simplificado, quando não simplório, atiçado pela imprensa , que a presença de Vargas Llosa, em Buenos Aires, não era iniciativa autônoma da Câmara Argentina do Livro, promotora da Feira, mas obedecia ao fato de o escritor ser um dos convidados ao seminário “El desafío populista a la libertad latinoamericana” (Hotel Sheraton, 17-20 abril 2011), promovido pela Fundação Libertad e pelo Instituto Catão, cujo nome nos relembra certas cartas chilenas. Como bem declara a página web do Instituto,

The Cato Institute is a public policy research organization — a think tank — dedicated to the principles of individual liberty, limited government, free markets and peace. Its scholars and analysts conduct independent, nonpartisan research on a wide range of policy issues.

Apoiado nesse previsível programa neoliberal, Vargas Llosa já se perguntara, nas páginas do Cato Policy Report, no início de 2004, qual é o motivo da incontornável falência latino-americana e julgava achar a resposta na impossibilidade de um correto funcionamento das instituições, que não contariam com a confiança dos cidadãos, no sentido de elas garantirem “security, justice, and civilization”. Assim, a vitória de Lula, por exemplo, era atribuída à busca de “algo diferente”, mesmo que essa diferença se manifestasse através de “charismatic leaders and demagoguery”. Por isso, ele clamava por um resgate do liberalismo, “not merely out of homage to truth, but because we live in a difficult time in history, when progress and civilization are threatened” .
Mais recentemente, no final de 2009, Vargas Llosa ainda participou de um outro seminário, “Las amenazas de la democracia en América Latina: terrorismo, debilidad del estado de derecho y neopopulismo” (Bogotá, 19-22 nov, 2009). Nele, e na mesma linha já conhecida, Vargas Llosa argumentou que

El desarrollo y la civilización son incompatibles con ciertos fenómenos sociales y el principal de ellos es el colectivismo (…). El socialismo, el nazismo y el fascismo son los fenómenos colectivistas del pasado. Hoy se expresa en América latina de una manera muy sinuosa y revistiéndose con ropajes que no parecen ofensivos sino prestigiosos (…). El indigenismo de los años ’20 que parecía haberse rezagado es hoy día lo que está detrás de fenómenos como el señor Evo Morales en Bolivia. El indigenismo en Ecuador, Perú y Bolivia está provocando un verdadero desorden político y social, y por eso hay que combatirlo.

Cinicamente, o escritor concluiu que “en el movimiento indígena hay un elemento profundamente perturbador que apela a los bajos instintos, a los peores instintos del individuo, como la desconfianza hacia el otro, al que es distinto”. Em 1973, entretanto, quando Pinochet, através do golpe, torcia o rumo econômico em favor das teses neoliberais da Escola de Chicago, Vargas Llosa escrevia dois textos que vale a pena reler à luz do presente debate. Ambos são corolário e complemento da virada cultural que então se processava. O primeiro é o prefácio à edição espanhola de O sexto, o romance de seu conterrâneo, o indigenista José Maria Arguedas. O segundo é Pantaleão e as visitadoras, romance que se passa na fronteira amazônica e prefigura A guerra do fim do mundo, a reescrita de Os sertões, textos ambos que são sintomas de reconhecer, no Brasil, os aspectos baixos (feitos de bajos instintos, diria Vargas, tais como o sexo e o poder), que aqui se manifestariam de forma mais eloquente até do que no resto do continente. No prefácio a O sexto, Vargas evocava uma anedota bem interessante, que situa a literatura (e a política?) na sua condição marginal.

Un día de noviembre de 1937, un dignatario del régimen fascista italiano, el general Camarotta, que se hallaba en Lima para asesorar a la dictadura de Sánchez Cerro en la reorganización de la policía, asistió a una ceremonia oficial en la Universidad de San Marcos. El acto no llegó a concluir: fue interrumpido por unos estudiantes que se abalanzaron sobre el enviado de Mussolini, lo cargaron en peso y lo zambulleron en la pila del patio de Derecho. En la Prefectura, los jóvenes declararon que, de este modo, querían protestar contra los bombardeos de las ciudades republicanas españolas por la aviación italiana. Entre los agresores, se hallaba José María Arguedas. Tenía ventiséis años, cursaba el cuarto año de Letras, el año anterior había sido detenido por primera vez y privado de su empleo en la oficina de Correos por formar parte de un Comité de Defensa de la República Española que el gobierno declaró ilegal. El baño de Camarotta tuvo consecuencias todavía más serias: Arguedas permaneció encarcelado cerca de un año (de noviembre de 1937 a octubre de 1938) en una prisión de Lima donde convivían, en efervescente promiscuidad, delincuentes comunes y presos políticos. Ésta es la experiencia básica que hizo posible El Sexto .

Mas em 2011, quando Vargas é declarado visitante de honra pela Prefeitura (neoliberal) de Buenos Aires, o banho e a consequente manifestação contrária à visita, seriam qualificados de simples atos de barbárie, sem reconhecer que, junto com a civilização, com seus bombardeios, como os que, ainda hoje, perduram em Tripoli, ou com o massacre de Abbottabad, o que cresce é a barbárie. Nem haveria condições de reconhecer que, ao não questionar o comprometimento da linguagem com esse estado de coisas, é a própria literatura que deixa de ser elevada e sutil e se degrada como bárbara propaganda. Um claro exemplo disso é a leitura torta de Dom Quixote, cuja edição do IV Centenário foi prefaciada por Vargas Llosa, onde o cavaleiro andante é assimilado a um disparatado neoliberal contemporâneo .
Não se trata, tão somente, nesses exemplos globais, de que democracia ou política sejam termos que perderam o sentido. Esse é, precisamente, o resultado da fusão das esferas artística, política e econômica. A propósito, caberia lembrar também que, pouco depois da guerra, Georges Bataille já argumentava que, até certo ponto, a palavra surrealismo perdera o sentido e era então (e tão somente) a ausência de palavra, porque revelava o poder que a língua tem para negar afirmando. O surrealismo foi (atreve-se a dizer, em passado, Bataille, em 1948) a linguagem que vai além das coisas e os surrealistas escreveram como escreveram apenas porque não queriam manter relações semelhantes às que mantêm um patrão e um empregado, um súdito e um soberano. Essa definição surrealista da literatura, como transgressão da evidência, atingia, como se vê, o cerne do caráter enigmático da linguagem. Ao passar da paixão (que o movimenta) para a escrita (que o exprime), o artista surrealista deparava-se com palavras que ele julgava poder submeter à sua paixão, mas que, na verdade, reduziam-no a um mero impulso dominado, criando assim um sutil paradoxo. Se falar, o artista dilui-se como mais uma coisa entre as coisas. Se calar, porém, o mundo, mesmo assim, falaria através de si, subordinando-o ao comunitário. Nem mesmo o escritor mais avesso à retórica poderia ignorar essa situação e, no entanto, ela confina-o ao paradoxo de sentir-se obrigado a se exprimir, através do discurso, e a adotar, em consequência, uma posição intelectual libertária, ainda que a contragosto .
Meio século depois, é Jean-Luc Nancy quem retoma o argumento, a partir, justamente, da noção de democracia. Segundo Nancy, o conceito de democracia tornou-se um caso exemplar de insignificância: forçada a representar o todo da política virtuosa e a única maneira de garantir o bem comum, a palavra acabou por absorver e por dissolver todo caráter problemático, toda possibilidade de interrogação ou de, tão somente, pôr-se em questão .
A hipótese de Nancy é que a democracia moderna pressupõe uma mutação política, uma mutação de cultura tão profunda, que ela passa a ter valor antropológico, juntamente com a mutação técnica e econômica da qual é solidária. Daí sua hipótese de que o contrato social de Rousseau não institua apenas um corpo político: ele produz a própria humanidade do homem. O paradoxo, na perspectiva de Nancy, reside no fato de que a democracia designa, de um lado, as condições das práticas possíveis tanto de governo quanto de organização social, sem intervenção de qualquer princípio transcendente, algo semelhante ao entendimento; mas, de outro lado, democracia também designa a Ideia do homem desde que, subtraída à toda aliança com um além-mundo, como sujeito de uma transcendência incondicionada e, nesse sentido, o conceito de democracia é semelhante ao de razão. A democracia moderna, nessa anfibologia, compromete o homem ontologicamente, e não apenas o cidadão, representado pelo que é comum. Segue-se que a democracia, enquanto política, não podendo ser fundada sobre um princípio transcendente, é necessariamente fundada, ou infundada, sobre a ausência de uma natureza humana. Essa sublimação do individual em nome do povo ou da comunidade, representou o desejo de a política ultrapassar-se a si mesma, eliminando-se como esfera separada, absorvendo e dissolvendo o Estado. A partir dessa auto-sublimação da política, de que o neoliberalismo é o momento extremo, sobreveio a ambivalência e até mesmo a insignificância do conceito de democracia.

Transferindo a soberania ao povo, a democracia moderna mostrou o que permanecia ainda (mal) dissimulado pela aparência de “direito divino” da monarquia (ao menos francesa): a saber, que a soberania não é fundada nem no logos, nem no mythos. Desde seu nascimento, a democracia (aquela de Rousseau) sabe-se infundada. É sua sorte e sua fraqueza: nós estamos no coração desse quiasma .

Torna-se necessário, portanto, dar um pas au-delà e ativar um procedimento neutro: pensar como a política infundada, e por assim dizer, em estado de revolução permanente, tem por tarefa abrir novas esferas que, embora a princípio estrangeiras ao próprio conceito, são, de fato, autênticas esferas da verdade ou do sentido, designações possíveis dessa relação elevada ao infinito que é a política. Daí que o que era antes um impasse, torne-se agora um paradoxo nutriente: pensar a heterogeneidade dessas esferas, em relação à esfera propriamente política, é ela mesma uma necessidade política.
Como a democracia não pode desejar uma polícia das pulsões, que discrimine entre domesticações corretas e incorretas, os valores de barbárie e civilização se tocam de forma tão perigosa quanto criativa, porque esse risco que se assume, o do desvio da correta via, do modo comum, o do senso comum, é o índice certeiro da indeterminação e da abertura do próprio movimento que, no interior de uma sociedade, leva a comandar e a possuir. Não se trata, portanto, como advogava Vargas Llosa, de que progress and civilization are threatened pela incultura e a barbárie, mas que não existe cultura sem barbárie, como Benjamin, aliás, já percebera no limiar da guerra. Um tal movimento, que é tanto de vida quanto de morte, de composição e de decomposição, tanto de sujeito em expansão como de objeto em sujeição, é de um lado um crescimento do ser, no seu desejo de liberdade, mas simultâneamente, é seu afundamento na satisfação material mais plena. Não cabe, portanto, aplicar a essas forças heterogêneas normas ideais formais, uma vez que essas forças em ação se determinam e se regulam, não pelo contrato social infundado, mas por outras vias, ora pelo desafio profundo do conatus de Spinoza, ora pela vontade de potência de Nietzsche. O que democracia quer dizer nesse novo contexto, que é o nosso presente, explica Nancy, é a admissão de todas as diversidades em uma comunidade que não as unifica, mas que implanta, ao contrário, sua multiplicidade e, com ela, o infinito em que elas constituem as formas inomináveis e inacabáveis. A política deve, em consequência, dar a forma do acesso à abertura das outras formas: ela pressupõe uma condição de acesso, não fornece uma fundação, nem determina um sentido. Ao contrário, deve renovar, infinitamente, a possibilidade da eclosão das formas ou dos registros de sentido. Não deve se constituir em forma, mas deve fornecer as possibilidades para o colocar-se em forma das forças. Nancy, em suma, conclui:

“Democracia” é, portanto, o nome de uma mutação da humanidade na sua relação com seus fins, ou com si mesma como “ser dos fins” (Kant). Não é o nome de uma autogestão da humanidade racional, nem o nome de uma verdade definitiva inscrita no céu das Ideias. É o nome, ó quão mal compreendido, de uma humanidade que se encontra exposta à ausência de todo fim dado—de todo céu, de todo futuro, mas não de todo infinito—. Exposta, existente.

Presença, presente, posição, ex-posição são, portanto, para Nancy, termos equivalentes. Nesse sentido, diríamos, não há, na argumentação de Vargas Llosa, nenhuma captação do presente, pelo simples motivo de que não há exposição, não há risco, não há potencialização ao infinito do deveras existente. Ao contrário, como já dizia Saer, una napa asqueante de lugares comunes dignos de una composición de sexto grado turvam ainda mais sua apreciação crítica e derrubam a falácia (extremamente comum, acima de tudo na imprensa independente), de que Vargas Llosa é um bom escritor, embora reacionário. Ele não é bom escritor, porque carece da possibilidade de vislumbrar a abertura e indeterminação, completamente sintomáticas de nosso presente, que agitam a cena contemporânea.
Justamente, em contrapartida, Jean-Luc Nancy continuou trabalhando o argumento da anfibologia conceitual da democracia, chegando a uma análise muito mais acurada do que seria comum ou, no extremo, do que seria o comunismo, como sinônimo da democracia.

Communisme désigne donc la condition commune de toutes les singularités ou sujets, c’est-à-dire de toutes les exceptions—qui ne s’exceptent d’aucune règle mais de l’indistinction insensible et insensée de la pure immanence fermée en soi. Le commun n’est donc rien de sous-jacent aux existants. Il n’y a d’existence que comme exception à un néant muet, clos, inexistant. Commune est la condition des non-communs dont le réseau fait monde, possibilité de sens. Le communisme ne relève donc pas de la politique. Il donne à la politique un requisit absolu: celui d’ouvrir l’espace commun au commun lui-même, c’est-à-dire ni le privé, ni le collectif, ni la séparation, ni la totalité – et d’ouvrir ainsi sans autoriser un accomplissement du « commun » lui-même, aucune façon de le substantifier ou de le faire sujet. Communisme est principe d’activation et de limitation de la politique (là où précisément auparavant la politique avait été pensée comme assomption du commun, d’un être supposé commun) .

Portanto, o comum não tem a ver com uma comunidade (e nesse caso, na argumentação de González, nada deve ao nacionalismo). Pensar desse modo, à maneira de Vargas Llosa, é atribuir uma qualidade fixa e fechada aos seres ou objetos existentes. E a posição de González talvez esteja mais próxima da emergência do in-existente (Kojève, Lacan, Badiou).

Commun désigne l’ouverture de l’espace entre étants (ou choses) et la possibilité indéfinie, peut-être infinie que cet espace s’ouvre et se rouvre lui-même tout autant qu’il change et se modalise lui-même, qu’il se clôt aussi parfois (mais jamais jusqu’à la limite de laisser seul un unique « étant » isolé qui disparaîtrait à l’instant même de son isolation) .

Comum significa, então, espaço, espaçamento, diferença. È, ao mesmo tempo, distância e proximidade. Mas seu sentido não é, não pode ser unitário, como vira e mexe tenta nos demonstrar Vargas Llosa. A esse respeito, em entrevista antes citada, o escritor Martin Kohan pondera o equívoco (intencionado) de Vargas, uma vez que

algo que fue no ser indiferente respecto de usted y de su posición política o de sus opiniones acerca del gobierno argentino actual y abrir la discusión al respecto fue reducido, a mi entender, falsificado, como un gesto de censura e intolerancia, en lugar de pensar justamente que no es que no hubiese tolerancia, lo que no había era indiferencia. No era indiferente que usted viniera y hablara, y se abrió un debate sobre qué perfil de intelectual puede ocupar un lugar u otro, por ejemplo el de la inauguración de la Feria del Libro en Buenos Aires. Eso fue reducido, y yo creo que distorsionado, como una intención de impedir que usted se expresara en la Argentina. Creo que es un buen ejemplo de las trampas posibles del discurso de la tolerancia, cuando presentan como censura algo que a mi entender no lo fue .

Na mesma linha de análise, outro escritor, Mario Goloboff, quem assinou manifesto de apoio a González, reiterou que

cientos de escritores argentinos sólo expresamos “nuestro desagrado y malestar ante la designación del escritor para inaugurar la Feria del Libro”. No hicimos ni dijimos más que eso, pero, evidentemente, [a Vargas Llosa] no basta o no le conviene que así sea: cuando nadie lo ataca, sostiene que lo atacan; cuando nadie lo censura, sostiene que lo vetan y censuran. Quienes lo protegen y utilizan como ariete para operaciones comerciales de alto vuelo, bastante ocultas bajo la batahola política y mediática, mucho más profundas, permanentes y de más largo alcance en esta poderosa avanzada de la lengua española en todo el mundo (y, va de suyo, de sus industrias lingüístico-mediático-culturales), juegan miles de millones de euros en el emprendimiento globalizador y parecen seguir –en tiempos felizmente más pacíficos– aquel mandato del gramático Antonio de Nebrija, de finales del siglo XV: “La lengua es el estandarte de su pueblo y el vínculo que une sus gentes, por eso debe llevarse en expansión a cuanto pueblo acudan sus fuerzas militares” .

Mas o espaço comunitário nem sempre coincide com a guerra expressa, mesmo que o sentido do comum, como aliás previra Bataille, situe-se sempre para além da significação. “Dans cette mesure, il est permis de dire que « communisme » n’a pas de signification, transgresse, déborde et outrepasse la signification : ici, là où nous sommes” . Mas dificilmente Vargas Llosa poderia conceber a democracia ou mesmo a política como esse vazio. Ele precisa materializá-la como disjuntiva, tirania vs liberdade, declinando o paradoxo. Como dizia Juan José Saer, a verborragia onipresente, a sintaxe capenga, seus efeitos de pacotilha, seu narcisismo vulgar, suas imprecisões enfatuadas, tudo conspira para tanto . Horacio González, entretanto, captou esse vazio, característico do acéfalo, em plena tragédia. Em um pequeno libro, “este librito”, como o chama recorrentemente, editado, mecanográficamente, em 1978, no exílio paulista, González lê a sociedade em chave acéfala e borgiana:

El peronismo fué uma fuerza bicéfala, cuyas dos naturalezas llamaban una a la concertación y otra a la radicalización. De este hecho fundacional se conservarán las dos lenguas. Los “antinómicos” rechazarán la concertación con la misma fuerza que los “concertacionistas” recharazán la búsqueda de antinomias. Todos pensaron que el par opuesto no era fruto de una terrible paradoja sino de una temperatura táctica de la que era posible desprenderse en el momento oportuno. Pero esa paradoja es la rueda sonámbula que mueve la lógica de las formaciones histórico-culturales de la Argentina contemporánea, la Argentina del peronismo. Ambas lenguas son el patrimonio cenceptual del peronismo. Que ambas no funcionaran como una totalidad, que entraran en colisión, que actuara una cuando parecia propicia la acción de la otra, es uno de los vacios teóricos y prácticos que el peronismo dejó en una encarnizada ambiguedad. Ambiguedad que en su momento festejamos, ambiguedad que en su momento teorizamos, ambiguedad que sobrevolaba sobre nosotros amenazante y lista para firmar sentencia.

9.
En las dos caídas, particularmente la de 1976, aparece en su trágica desnudez el vacío que crearon las dos lenguas al bifurcarse, con personajes desgarrados que servían alternativamente a una o a otra. El viejo jefe acepta la realidad de esta doble sintaxis, que responde a los dos deseos incumplidos del peronismo, la unidad nacional y el fin de la explotación social, y la consagra en lo íntimo de su reflexión, en la huella visible de su praxis y en los increíbles meandros barrocos que asumía su discurso. El lenguaje central de la formación cultural argentina de los últimos treinta años es ésta monumenta lúdica creada por el peronismo y su viejo jefe, quien se mueve en la textura dialéctica de la furia y de la calma en medio de maravillas sintácticas. Como sonámbulos bamboleantes, todos supimos probar en medio de vapores adormecedores, las bondades de cada uno de los caminos que la lógica interior del movimiento del 45 indicaba como posibles. Todos fuimos sonámbulos de la revolución social o sonámbulos del proyecto de concertación nacional.

O inexistente tem aqui a densidade de uma potência sem ato, de uma espectralidade não realizada, de uma hipótese, mas nunca uma síntese. Devo concluir. Para tanto, porém, voltemos ao início. Logo em 1956, Deleuze já notara, em As duas fontes, a presença de um processo de diferenciação que Bergson resumia na fórmula de que a dicotomia é a lei da vida e, portanto, se a diferenciação é uma ação, ela não pode ser confundida com um simples conceito, mas com a produção de objetos que acham sua razão de ser nessa manifestação de caráter dinâmico. Tal, em poucas palavras, a posterior posição de Jean-Luc Nancy. Em 1933, resenhando o mesmo livro citado por Deleuze, As duas fontes, Borges compreendera também que o objetivo de Bergson era “exaltar los procesos creadores del pensamiento (…) en oposición a la naturaleza de sus resultados, los cuales, según él, uma vez obtenidos, se fijan y se desempeñan de uma manera, más que estática, automática” . Borges, em ignorada e virtual rota de colisão com Vargas Llosa, compreendeu prematuramente que, para Bergson, as crenças políticas nada devem à verdade. “Al igual que el sentido común y todo lo que comunmente pasa por la inteligencia humana, aquella facultad no es sino la resultante de la conformación del hombre al medio social en que vive y esta conformación es una particularidad inherente al orden universal de las cosas” . Reconhecendo, portanto, duas ordens, uma fechada, imanente, e outra aberta, transcendente, Borges avaliava que a vantagem da primeira era que ela “protege al hombre contra peligros de um ejercicio sin contralor de la inteligencia. Los resguarda contra la destrucción social” , ao passo que a vantagem da segunda era a participação mística no comum, com a ressalva, porém, de que “una actitud de carácter místico no es pasiva o contemplativa, como la que encierra la sujeción a los dogmas o a las personas, sino esencialmente activa (…), único poder que hace que la vida humana valga la pena ser vivida” . A abertura do conceito de democracia tem, em suma, vários capítulos latino-americanos. Neles talvez fique mais claro o motivo pelo qual Borges é um escritor e Vargas, um escrivinhador.