Um antropólogo catarinense no Alto Rio Solimões

07/05/2012 16:00

Rastros do“povo pescado no igarapé”

 

Quando em julho de 1962 o jovem historiador Sílvio Coelho dos Santos viajou para o território Ticuna em uma expedição arriscada pelo alto rio Solimões,tinha o desafio de agregar experiênciaprática à sua formaçãoteórica como antropólogo. Ao chegar ao município de Benjamim Constant, ao lado da colega Cecília Maria Helm e do etnólogo Roberto Cardoso de Oliveira, que o orientava na pesquisa, encontrou um povo massacrado pelo avanço violento dos seringueiros e madeireiros sobre suas terras após o boom da exploração da borracha. Desfigurado pelo álcool e pela miséria, os Ticuna lutavam para perpetuar a prática de suas tradições. Mas o pesquisador também encontrou um grupode riqueza cultural fascinante, que organiza todos os seres vivos, inclusive os humanos, em duas grandes linhagens, a das aves e a das plantas, e cujas máscaras, desenhos e pinturas ganhariam,por sua força e originalidade,fama internacional. Muito alémda prestação de contas de um trabalho acadêmico exploratório, a coleção de objetosetnográficos, diapositivos e diários de campo inéditos deixados pelo antropólogo representam aretribuiçãoemocionada de um jovem de 24 anos ao povo pacífico, masnão passivo, que o acolheu por três meses e o fez selar o pacto de toda uma vida em defesa dos povos indígenas brasileiros.

 

Desde a vivência com os Ticuna (Túkuna, na grafia original)até o dia de sua morte, em outubro de 2008, de câncer, Sílvio Coelho dos Santos dedicaria sua inteligência e energia física à compreensão do modo de ser índio. No dia 9 de maio, às 19 horas, no campus da UFSC em Florianópolis, o Museu de Arqueologia e Etnologia ProfessorOswaldo Rodrigues Cabral (MArquE) apresenta pela primeira vez ao públicoa coleção com 53 objetos recolhidos entre os Ticuna e os registros de campo, compostos por 135diapositivos(slides) e dois diáriosproduzidos pelo antropólogo catarinense no coração da selva amazônica.Desde que retornou da expedição,no final dos anos 60, esse legado esteve depositado na Reserva Técnica da antiga sede do Museu Universitário, do qual ele foi um dos fundadores, aguardando as condições de climatização e conservação que um acervo dessa natureza e importância exige para ser exposto. Isso só foi possível com a inauguração do grande pavilhão que recebe seu nome, no dia 24 último, pela Secretaria de Cultura e Arte da UFSC.

Subindo de barco os igarapés e visitando comunidades, Sílvio Coelho recolheu objetos representativos dessa cultura com a preocupação de salvá-los da desaparição e esquecimento futuros, em uma mostra do vínculo afetivo e político que o ligou ao “povo pescado com vara”. A cosmogonia Ticuna acreditaque essa gente foi pescada com vara por um herói mítico (Yo´i) nas águas vermelhas do igarapé Eware, segundo conta a chefe da Divisão de Museologia do MArquE Cristina Castellano,que coordena a exposição ao lado da museóloga Viviane Wermelinger  e da restauradoraVanildeGhizoni.Depois de nascer do rio, passou a habitar as cercanias da montanha Taiwegine, onde morava o herói, um local preservado até hoje como testemunho sagrado da gênese desses índios que enfeitiçaram o antropólogo catarinense pelo coração e pela mente.

 

A exposição “Ticuna em dois tempos” traz à tona essa história de amor ao conhecimentoe homenagem a mais numerosa nação indígena da Amazônia brasileira e também do país. Cruza dois olhares de duas épocas distintas em duas coleçõesproduzidas com critérios e objetivos diferentes sobre a mesma etnia. De um lado, o olhar do historiador e antropólogo catarinenserepresentado no material coletado durante a sua participação no Curso de Especialização em Antropologia no Museu Nacional (da antiga Universidade do Brasil), no Rio de Janeiro, na década de 1960. Integram o conjunto de Sílvio Coelho adornos pessoais, cerâmicas, cestos e utensílios domésticos, bonecas esculpidas em madeira, estatuetas em madeirade macaco prego, esculturasantropozoomorfas,mantas, remos, indumentárias completas,brinquedos infantis, umtambor e principalmente bastões cerimoniais, máscaras eoutros objetos ritualísticosutilizados na Festa da Moça Nova, além deslidesde figuras humanas e paisagens.

 

De outro lado, estáo olhar estético doartista plástico Jair Jacmont, que formousua coleção na década de 1970, adquirindo os objetos dos próprios índios, na cidade de Manaus. São mais135 peças, entre esculturas antropomorfas e bastões de ritmo usados para danças e rituais, além de uma considerável quantidade de máscaras esculpidas em madeira. Sob a guarda do Museu Amazônico da Universidade Federal da Amazônia desde 1994,essa coleção veio para Florianópolis como parte de uma parceria com a Rede de Museus do Instituto Brasil Plural – IBP. Explica a diretora do MArquE Teresa Fossarique a exposição conjunta é um projeto alimentado há longa data pelas duas instituições de extremos opostos do Brasil, com o objetivo de promover o diálogo entre esses dois reveladores olhares para a mesma cultura.

Serviço:

Exposição “Ticuna em Dois Tempos”

Local: Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral

Universidade Federal de Santa Catarina – Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima – Trindade – Florianópolis – SC

Abertura: 9 de maio, às 19 h

Período de exposição: 10 de maio a 25 de outubro de 2012

Horário: Segunda a sexta (fechado as terças) – 10h às 17h